Todos os dias, João se levantava, sem erro e exactamente, às cinco e um quarto da manhã. A cada dia, levantava-se e repetia, ao mínimo detalhe, o mesmo gesto. Olhava suas mãos, cansadas, preenchidas de pequenas marcas que indicavam o seu longo acumular de experiência. Olhava-as, cansado, tomava um banho frio, e vestia os seus calções, uma simples camisola de algodão, e por cima desta, um casaco de ganga, para evitar a nortada. Beijava sua mulher, que àquela hora, sempre dormia. Ao sentir seu ínfimo toque, estremecia ligeiramente e isso bastava para que João esboçasse um custoso sorriso. Fechava a porta da sua minúscula casa, sem olhar para trás, e descia as longas escadas. Levava consigo, no seu cesto de vime, a comida que melhor lhe iria permitir suportar o longo dia, e na sua canastra, as esperanças de um bom dia, na marinha. Consigo também, a sua motocicleta, companheira de longas horas, que o conduzia, desde a aldeia, longe da ria, longe do mar, longe de tudo, até à marinha, onde seus companheiros já o esperavam. Todos os dias, a partir das sete da manhã, os seus camaradas, três, e com ele próprio quatro, enfrentavam a marinha.
Naquele dia, seu último dia, João estava atrasado. Os seus camaradas esperavam-no para abrir o barraco, enquanto se perguntavam se o dia iria ser longo. “Conforme o trabalho que houver para fazer”, respondeu o mais velho dos marnotos. No dia anterior, a viva tinha inundado toda a marina, da água marulha, e com a pá cova, os quatro tinham retirado toda a lama e moliço, daquela suja água. João havia chegado entretanto, aberto o barroco, e estavam os quatro, então, prontos para começar verdadeiramente o trabalho. Apanhavam o sal, que boiava no cimo da água, de mãos desnudas, secas dos longos anos de ofício e iam colocando-o, dentro das canastras. Passavam-se sempre assim duas ou mais horas e era agora a vez de, com a razoila, rer o sal até à hora de almoço. Os estômagos, por aquela altura, naquele e em todos os outros dias, já esmolavam alimento. Mas João e seus companheiros resistiam, nobremente, e por mais que a razoila lhes pesasse nas mãos e nos braços exangues, o trabalho precisava de ser feito, e nenhum queixume o ia mudar. Assim continuaram, enquanto João os tentava animar, “Vamos lá, daqui a pouco já comemos o bom do bacalhau. Até vai saber melhor, aqui e com o estômago vazio.” Passado algum tempo, João chamou-os para perto do barraco, e estes sentaram-se, à volta da mesa de madeira, que ficava guardada, religiosamente, dentro do barraco. João anunciou o que todos já sabiam. “Camaradas, como sabem, hoje despeço-me de vocês. Foi um prazer. De vocês, levo bons momentos e daqui, desta marina, das longas horas, do vento que esfria os ossos, da água que nos seca a pele e o corpo, as mãos mais cansadas.” Riram-se tristes, enquanto ensopavam a broa na sopa, e brindaram, por cima de toda a fadiga e da rotineira conversa, com vinho tinto. O almoço estendeu-se um pouco mais do que o habitual, mas até isso João, para todos os efeitos “chefe”, da marina, perdoou. Era altura, agora, de bulir a água, e o sol, apesar do vento frio, estava lá bem no alto, amorenando a tez dos quatro. Enquanto os quatro conversavam, o tempo foi-se esvaindo. As cinco horas da tarde, o entardecer, o fim do dia afinal, rapidamente se aproximaram. Era hora de João sair. Sabia que saía com a canastra cheia, e com o coração, quiçá, algo mais vazio. Levantou-se, limpou as mãos, e abraçou os moços, dirigindo-lhes algumas palavras, de conforto e força. “Amigos, despeço-me. A todos, uns bons belos anos, aqui ou noutro sítio qualquer.” Pegou na motocicleta, equilibrou a canastra na parte traseira e partiu. O som do motor inundou os céus, e os colegas regressaram à labuta, dir-se-ia indiferentes.
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